Com a morte do pai, o jovem filho do moleiro assumiu os trabalhos no moinho e os cuidados para com a piedosa mãe. Isso posto, é preciso dizer que a mãe era conhecida na aldeia como “Coração Falante”, pois que todas as palavras que saíam de sua boca eram eivadas de ternura e lições de amor. Certo dia, o jovem foi levar trigo ao palácio e, ao olhar à janela, entorpeceu-se com o rosto majestoso da princesa. Mãe, disse ele ao voltar, ela acorda a alva. Cuida que o amor é um convite para sair de si mesmo, respondeu a mãe. E, ao mesmo tempo, uma união com a condição de cada um preservar a própria integridade. Por isso o amor exige o respeito à singularidade da outra pessoa como indivíduo. Seu exercício supõe a descoberta um do outro. O amor a todos chama, poucos, no entanto, o alcançam, revelou-lhe Coração Falante. Ele é a eternidade, logo, maior do que uma só vida. Visto como o fascínio é gerador de poder: o poder da atração, este “cativeiro” não pode ser entendido como falta de liberdade.A união deve mostrar o caminho da expressão cada vez mais enriquecida da nossa sensibilidade e da nossa personalidade. Todavia, o lugar mais sombrio é embaixo da lâmpada, meu filho. Que te tens a oferecer a ela, se não algumas medidas de trigo, alertou a mãe.Coração Falante conhecia a alma narcisista e ambiciosa da princesa. E sabia que o narcisismo mata na medida em que torna impossível a ligação fecunda com alguém, pois, apaixonado por si, o presunçoso não acorda para alimentar-se de amor. Folgo que ela me atenda mãe, disse o jovem, eu tenho o bem mais precioso para dar-lhe: o meu coração. A princesa, ao saber do amor do jovem moleiro, sentiu no poder, gerado por esse sentimento, a excitação pela possibilidade de ultrapassar limites. Era atenta à força que o êxtase exerce sobre o enlevado. E, para a futura rainha, atração é uma ferramenta feita para controlar; para manipular.Enviou recado ao jovem. Que te tens, além de teu coração para me dar, que prove teu amor incondicional por mim? Que presto me tem um coração plebeu, se tantos nobres já me ofereceram os seus? O moleiro despachou o lacaio a dizer que daria a Lua, o Sol os céus e o oceano, se lhe fosse possível, e vigiava que isso seria uma prova inconteste de seu amor. Tolo, respondeu a princesa. Mereces morrer a ferros no calabouço se atendes que aceitaria promessas do impossível: maneira de alvejar sem esforços. Somente algo que te seja mais caro e palpável aceitarei. Traga-me o coração de sua mãe, para que meu reino veja que Coração Falante nada mais é que uma víscera muda e estúpida e então, terás provado teu amor por mim. Era uma vez um jovem moleiro que com seu punhal e um golpe traiçoeiro extraiu o coração da mãe e saiu a correr para o palácio com intenções de provar seu amor por uma princesa. Tropeçou e caiu no caminho. O coração da mãe escapou-lhe das mãos, rolou por alguns metros entre as pedras antes de perguntar: Machucou-se, meu filho?
*Norberto V.S. Hoff ocupa a cadeira 39 da Academia de Letras e Artes de São Francisco do Sul.
Um comentário:
Hoje encontrei uma crônica minha no seu blog e fiquei feliz, até por que, de forma ética, vc creditou. Parabéns. Não pare, o mundo precisa de mais pessoas como vc. bjs e sucesso.
Norberto V.S. Hoff
norbertohoff.blogspot.com
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